Cânticos dos Cânticos – Salomão


No hebraico, shir hashirim. Na Septuaginta, Asma ou Asma asmáton. Na Vulgata Latina, Canticum Canticorum.
Dentro da Bíblia hebraica, este livro é o primeiro dos cinco rolos (no hebraico, Megilloth), que eram lidos quando das festas religiosas judaicas. Geralmente tem o nome de Cântico dos Cânticos nas diversas versões, mas a nossa versão portuguesa prefere «Cantares de Salomão». A forma hebraica, shir hashirim, é a forma superlativa (Can. 1.1), que significa «o mais excelente dos cânticos». Dentro das tradições judaicas, os Cantares eram lidos por ocasião da páscoa, para os judeus, a mais importante das festas religiosas.
Esboço:
I.     Pano de Fundo
II.    Autoria
III.   Data
IV.  Unidade do Livro
V.   Lugar de Origem
VI.  Destino
VII.  Motivo de sua Escrita
VIII. Propósito do Livro
IX.    Canonicidade
X.     Estado Atual do Texto
XI.    Conteúdo e Esboço
XII.   Interpretação da sua Mensagem
XIII.  Teologia do Livro
XIV.  Bibliografia
I.   Pano de Fundo
Os que pensam que Cantares de Salomão é obra de autoria de Salomão, rei de Israel, vêem o princípio da monarquia israelita como o pano de fundo da obra. O tom pastoril de seu quadro poético sugere um longo período de paz em Israel, naquele período que os historiadores têm chamado de «época áurea» da cultura dos hebreus, as monarquias de Davi e Salomão, Acresça-se a isso que o livro de Cantares contém numerosas referências a animais e plantas exóticas, tudo o que nos faz lembrar da fama de Salomão nos campos da biologia e da botânica. Isso nos leva de novo ao período inicial da monarquia hebréia. As diversas alusões geográficas existentes no livro parecem indicar uma fase da história dos hebreus em que o reino ainda não havia sido dividido em dois: o reino do norte, Israel, e o reino do sul, Judá. Assim, o livro fala sobre lugares nortistas como o Líbano (Can. 3.9; 4.8,11,15), o monte Hermom (4.8), Tirza (6.4), Damasco (7.4) e o Carmelo (7.5), como se formassem um único reino, juntamente com Jerusalém e as terras em redor. Todavia, isso poderia significar apenas que os arroubos poéticos do autor não eram consrações puramente locais, conforme alguns estudiosos têm salientado. Seja como for, o livro mostra claramente que o autor estava familiarizado com a geografia de toda a região da Síria-Palestina, desde as montanhas do Líbano até En-Gedi, perto do mar Morto (Can. 1.14). Mas, apesar de o livro mencionar produtos exóticos do Extremo Oriente, não há nenhuma indicação de que o matéria! tenha sido escrito fora da Palestina, ou com um pano de fundo estritamente palestino.
II.     Autoria
Quase todos os eruditos modernos rejeitam a autoria de Cantares por parte de Salomão. Esses preferem ver no livro uma coletânea de cânticos que celebrariam o amor pré-marital e marital. Seja-nos permitido observar que dificilmente esse tema teria tornado o livro aceitável aos judeus, para ser incluído no cânon sagrado, pelo que se trata de uma opinião muito duvidosa. Além disso, dizem alguns que a única prova de que o livro teria sido escrito por Salomão é o título, ou introdução editorial, conforme alguns eruditos o têm descrito, porquanto a forma mais completa do pronome relativo só é usada em Can. í.l: «Cântico dos cânticos de Salomão». Um ponto técnico gramatical é que no hebraico há nisso uma construção ambígua, pois a partícula atributiva poderia significar «para», «acerca» ou «segundo», ou então poderia aludir à autoria direta de Salomão. No entanto, o nome do famoso monarca hebreu, Salomão, aparece por seis vezes no texto do livro (Can. 1.5; 3.7,9,11 e 8.11,12). E o último trecho, Can. 8:11,12, refere-se de passagem às riquezas materiais desse rei. No terceiro capítulo, Salomão é mencionado em três ocasiões diversas, em conexão com um elaborado cortejo, onde devemos ver a personagem histórica chamada Salomão. As alusões ao «rei» também são, geralmente, associadas a Salomão (Can. 1.4,12 e 7.5). Todavia, embora o grande rei hebreu seja a figura central de certos poemas (entre os quais se destaca o de Can. 3.6-11), na verdade ele nunca aparece como aquele que fala, e por esse motivo, certos estudiosos pensam que pelo menos alguns dos poemas foram escritos sobre Salomão, e não diretamente por ele.
Os argumentos em favor de uma autoria que não a de Salomão, geralmente, também falam em uma data posterior para o livro, e isso sobre bases lingüísticas. Para exemplificar isso, há quarenta e nove vocábulos hebraicos que só ocorrem no livro de Cantares, em todo o Antigo Testamento; e alguns desses termos são de natureza botânica. Também há palavras e frases que parecem refletir o aramaico usado em certas composições pós-exílicas, sem falarmos em palavras que parecem ter sido tomadas por empréstimo do persa e do grego. Tudo isso pode ser naturalmente explicado pelo fato de que o vocabulário de um livro qualquer depende muito do assunto que estiver sendo tratado ali. Não admira, pois, que haja tantas palavras técnicas que se referem à zoologia e à botânica nesse livro, que não se acham em outros livros do Antigo Testamento. Quanto a outros vocábulos, também não é dificil justificá-los. Assim, no caso do nome da especiaria que era importada do Oriente, «cinamomo» (Can. 4.14), temos um termo importado. O comércio entre a índia e a Mesopotâmia já estava bem firmado desde o terceiro milênio A.C., como também o comércio com o Egito. Isso quer dizer que, na época de Salomão, havia uma longa tradição de contatos comerciais com o Extremo Oriente. Por essa razão é que os nomes de certos produtos e substâncias, mencionados no livro, têm paralelos obviamente sânscritos. Poderíamos citar os casos do «nardo» (no sânscrito, naladu — Can. 1.12; 4.13,14) e a «púrpura» (no sânscrito, regaman — Can. 3.10 e 7.5). E alguns eruditos pensam que a palavra hebraica para «palanquim» (ver Can. 3.9) não veio através do grego, conforme muitos acreditam, mas derivou-se diretamente do termo sânscrito paryankci. Quanto à presença de alguns termos aramaicos no livro, isso nada significa, porquanto há vários outros livros do Antigo, e até do Novo Testamento, que contêm termos aramaicos, sem que isso altere em coisa alguma as questões da data ou da autoria desses livros. Ademais, o aramaico era língua gêmea do hebraico, mas que, desde o segundo milênio a.C., pelo menos, vinha sendo falada na Assíria e em outros lugares a leste da Palestina. Portanto, nada existe na linguagem em que foi escrito o livro de Cantares que requeira uma data posterior para a sua composição. Concluímos, pois, que devemos aceitar a autoriasalomônica que, tradicionalmente, tem sido dada a esse livro.
III.   Data
Os críticos que atribuem um dos dois poemas do livro de Cantares a Salomão naturalmente datam-nos dentro de seu reinado, admitindo que o restante do Livro foi coligido por ele (970-930 a.C.). E a menção a Tirza (Can. 6.4), como se fosse a contraparte nortista de Jerusalém, aponta para uma data comparativamente antiga da composição, ou, peio menos, daquela porção do livro. Antes do governo de Onri (885/884-874/873 a.C.), Tirza fora a principal cidade do reino do norte; mas, quando Onri subiu ao trono de Israel, então, estabeleceu Samaria como a sua capital, tendo construído ali um esplêndido palácio real, além de numerosos outros edifícios e de ter fortalecido muito a cidade. Portanto, se Tirza aparece em Cantares como a principal cidade da porção norte do país, assim como Jerusalém era a principal cidade da porção sul, então a seção poética envolvida bem pode ser datada no século X a.C., a época de Salomão.
IV.   Unidade do Livro
Talvez o livro seja a coletânea de vários poemas que cantam o amor rústico, interiorano, de origem incerta. Nesse caso, Salomão teria sido o compilador e editor, que deu um burilado geral ao livro. Mas fê-lo de tal modo que o livro estampa sinais bem claros de unidade de estilo e de tema geral. Em face do que parece ser a unidade mais central da obra, a saber, o tema da riqueza do amor humano, parece que as tentativas de fragmentação do livro, que alguns críticos têm sugerido, são forçadas e artificiais. Portanto, devemos pensar que, da pena de Salomão, o livro de Cantares saiu como uma única obra literária.
V.     Lugar de Origem
Se o livro foi, realmente, composto por Salomão, então, o lugar de origem da obra deve ter sido a corte real, em Jerusalém. O trecho de 1 Reis 4.32 fala sobre as habilidades literárias de Salomão. Todavia, os críticos que não aceitam a autoria salomônica têm pensado que pelo menos alguns dos poemas constantes no livro de Cantares foram escritos no reino do norte, quando da monarquia dividida. Porém, todos os argumentos nesse sentido já foram respondidos.
No entanto, se estão certos os estudiosos que pensam que o livro de Cantares nada tem que ver com Salomão como seu autor, então, a passagem do livro que gira em torno de Can. 6.4 pode ter sido escrita em Samaria ou nas proximidades. É mister, contudo, deixar claro que toda a opinião acerca do lugar de origem do livro precisa alicerçar-se sobre pura especulação, posto que não há indicações no livro que nos permitam precisar o local exato, dentro da Palestina, onde a obra poderia ter sido preparada. Por exemplo, não há provincialismos perceptíveis.
VI.  Destino
A maneira como interpretamos o material do livro de Cantares também determina os possíveis destinatários da obra. Não parece que o autor sagrado tenha visado outra gente além dos próprios israelitas. Se os poemas foram compostos apenas para exaltar o amor humano, em suas várias facetas, então, não é provável que os destinatários tenham sido pessoas fora do povo em pacto com Deus, o povo de Israel. Um costume surgiu posteriormente entre os árabes, de recitar poemas eróticos, conhecidos entre os árabes por wasfs, diante de um noivo e sua noiva, pouco antes da cerimônia do casamento. Por essa razão, alguns eruditos têm pensado que o livro de Cantares serviria a um propósito similar, em Israel. Contudo, não podemos depender de um costume árabe para explicar a finalidade de uma composição escrita em Israel, cuja mentalidade sobre questões morais era tão diferente. Dificilmente um wasf seria aceito entre os livros canônicos de Israel.
VII.  Motivo de Sua Escrita
Não se sabe dizer o que teria motivado um autor sagrado a compor o livro de Cantares. Se o livro é apenas uma antologia de poemas líricos, que exaltam o amor físico, de proveniência salomônica em geral, então poderia ter sido motivado por um ou mais dos numerosos casamentos desse monarca hebreu. Mas, se o livro consiste em uma coletânea de cânticos nupciais de várias regiões do reino hebreu, então algum editor desconhecido apenas quis preservar para a posteridade esses poemas iíricos. A própriasubjetividade do processo de produção do livro, visto que no livro nada se lê que nos esclareça a respeito, inevitavelmente, faz com que a questão seja nebulosa para nós.
VIII.  Propósito do Livro
Muitos expositores têm sentido grandes dificuldades para justificar a inclusão do livro de Cantares de Salomão no cânon das Escrituras Sagradas. Parte dessa dificuldade se deve ao seu flagrante erotismo. Por outro lado, o livro é um longo mashal ou provérbio, ilustrando a riqueza e a beleza do amor físico humano; e, como tal, faz parte firme da tradição gnômica da 1 iteratura de sabedoria dos hebreus. Devemo-nos lembrar de que esse material originou-se no Oriente Próximo, onde imperavam diferentes atitudes quanto a certos pontos de morai. Deve-se observar que somente pessoas de classes abastadas poderiam dar-se ao luxo de empregar as substâncias exóticas e caríssimas, mencionadas nesses poemas. Tais pessoas, em contradição com as classes populares, estavam acostumadas a considerar o sexo em termos não tanto ascéticos, como uma questão não embaraçosa. Todavia, talvez essas pessoas e esses poemas se excedam um tanto, em relação com aquilo que nós estamos acostumados. Porém, o livro escolhe um curso que é um meio-termo entre a perversão, ou, pelo menos, o excesso sexual, por um lado, e a negação rígida e emocional das necessidades físicas, por outro lado, descendo até momentos da maior intimidade física entre um homem e uma mulher que se amam. No dizer de E. J. Young, talvez tudo isso reflita um amor mais puro que o nosso; ou, então, comentamos nós, uma atitude não tão vitoriana quanto a nossa.
IX.   Canonicidade
A julgar pelas fontes rabínicas, é claro que o livro de Cantares de Salomão não obteve inclusão imediata no cânon das Escrituras hebraicas. O Talmude chega a atribuir essa composição escrita a Ezequias e seu grupo de escribas, uma opinião que pode estar alicerçada sobre as atividades do grupo que, aparentemente, editou outros materiais escritos de Salomão (cf. Baba Bathra 15a e Pro. 25.1). A Mishnah (Yadaim 3.5) indica que o livro de Cantares não foi aceito no cânon senão com alguma disputa no tempo do suposto concílio de Jamnia (cerca de 95 d.C.). Após pareceres favoráveis e desfavoráveis quanto à inclusão do livro no cânon sagrado do Antigo Testamento, foi o rabino Aqiba quem comentou: «…todos os Escritos são santos, mas o Cântico dos Cânticos é o santo dos santos». Porém, bastaria isso para mostrar-nos que havia muitas dúvidas se o livro deveria ser incluído ou não no cânon. E toda a oposição à sua inclusão devia-se à natureza erótica do conteúdo da obra. De fato, quando da inclusão do livro no cânon, houve também a cautela de ser proibido o uso de qualquer porção sua em banquetes e reuniões semelhantes, a fim de que não houvesse abusos que envolvessem um livro considerado canônico. A solução para esse aspecto erótico do livro consistiu em interpretá-lo não em sentido literal, mas como uma alegoria. Essa interpretação tem prevalecido tanto entre os judeus como no cristianismo em geral.
X.   Estado Atual do Texto
As obscuridades do livro de Cantares parecem mais devidas à presença de um número incomum de palavras raras, devido à natureza do assunto tratado, do que a algum manuseio por parte de escribas. Visto que a Septuaginta e o Siríaco Peshitta seguem bem de perto o texto massorético, essas versões não nos ajudam em coisa alguma a determinarmos melhor o sentido exato de certas palavras existentes no texto de Cantares. Além de consideráveis dificuldades de tradução em trechos como Cant. 6.12 e 7.9, também não sesabe o sentido de quatro palavras hebraicas diferentes, ali existentes, em Can. 1.17; 4.4; 5.14 e 7,6, E o complicado simbolismo empregado no livro aumenta mais ainda as dificuldades de tradução.
XI.   Conteúdo e Esboço
Não é fácil apresentar uma análise do livro de Cantares à maneira convencional, por causa do fato de que todos os diálogos são muito entretecidos e difíceis de deslindar. Há ali diálogos (por exemplo, Can. 1 ;9 ss.) e solilóquios (por exemplo, 2.8—3.5), e as palavras passam de uma personagem para outra com tanta freqüência que é impossível identificar precisamente essas personagens. As «filhas de Jerusalém» são mencionadas durante a exposição (Can. 1.5; 2.7; 3.5 etc.), e a elas são atribuídas certas respostas, no diálogo (por exemplo, Can. 1.8, 5.9; 6.1 etc.). Uma situação similar ocorre no caso dos habitantes de Sulém (Can. 8.5) e os de Jerusalém (Can. 3.6-11), Entretanto, em termos gerais, poderíamos esboçar o conteúdo do livro de Cantares como segue:
1.       A noiva exprime seu anelo pelo noivo, e canta seus louvores (1.1—2.7).
2.       Aprofundando-se a afeição mútua entre eles, a noiva continua a elogiar seu amado, usando símbolos da natureza (2.8-3.5).
3.       Louvores ao rei Salomão, à noiva e aos desposórios (3.6-5.1).
4.       O noivo ausenta-se por algum tempo, durante o qual a noiva anela pela volta do noivo e continua a elogiá- lo (5.2 -6.9).
5.       Uma série de passagens descritivas sobre a beleza física da noiva (6.10—8.4).
6.       Conclusão, que aborda a permanência do verdadeiro amor (8.5-14).
XII.   Interpretação da Sua Mensagem
Nenhum livro do Antigo Testamento tem sido interpretado de tantas maneiras diferentes como o livro Cantares de Salomão. Isso se deve ao fato de que não há no livro nenhum tema especificamente religioso e central. Quatro abordagens principais devemos destacar aqui: a interpretação alegórica, a interpretação cúltica, a interpretação dramática e a interpretação lírica.
A interpretação alegórica foi adotada pelos rabinos e pelos pais da Igreja como a única maneira de resolver os problemas associados à aceitação do livro no cânon das Escrituras; essa é a interpretação até hoje favorecida pela Igreja Católica Romana e pelos comentadores judeus ortodoxos. Para estes últimos, Deus seria o grande amante dos poemas, e Israel seria a noiva, que receberia as demonstrações das misericórdias divinas. As mãos dos cristãos, porém, houve alguma modificação, pois a noiva passou a ser a Igreja cristã. De fato, isso transparece em certos trechos do Novo Testamento, como, por exemplo, João 3.29, Efésios 5.22,23, Apocalipse 18.23 e 22.17. Foi Orígenes quem desenvolveu a interpretação alegórica clássica, sendo seguido por Jerônimo, Atanásio, Agostinho e muitos outros. No entanto, a maioria dos expositores cristãos tem evitado os problemas que surgem quando se expande o livro de Cantares em termos da história da Igreja cristã. Uma variante dessa interpretação, postulada por alguns escritores patrísticos, é a que diz que o livro reflete a relação entre Deus e a alma individual. Essa variante também foi iniciada por Orígenes, tendo sido adotada por alguns dos pais da Igreja e por certos escritores medievais. Ambrósio e alguns comentadores católicos romanos, mui caracteristicamente, têm identificado a noiva com a Virgem Maria, ao passo que Martinho Lutero opinava que a noiva nada mais seria do que o reino salomônico personificado. E alguns intérpretes identificam variegadamente a noiva, como se ela representasse, em um trecho ou em outro, Israel, a Igreja cristã, a Virgem Maria e o crente individual. Porém, a própria subjetividade da interpretação alegórica contribui para desacreditá-la. Apesar disso, a interpretação alegórica do livro de Cantares é a que tem predominado no pensamento protestante, pelo menos até recentemente.
A interpretação cúltica tem sido favorecida por alguns estudiosos à luz das liturgias do Oriente Próximo que comemoravam a morte e a ressurreição de alguma divindade. Segundo esse ponto de vista, o amante do livro de Cantares seria um deus que morrera e ressuscitara, ao passo que sua noiva seria sua irmã ou sua mãe, que se lamentava por sua morte e saíra freneticamente atrás de seus restos mortais. Algo similar teria acontecido a Baal e Anate, dos cananeus, a Tamuz e a Israel, dos babilônios, e a Osíris e Isis, dos egípcios. E os idealizadores dessa ideia dizem que o que servia para comprovar isso era que o livro era usado por ocasião de uma festividade religiosa dos judeus. Mas, além de quatro outras composições canônicas serem usualmente empregadas em festividades religiosas dos judeus, não há nenhum indício de que Israel jamais tivesse qualquer cerimônia que se assemelhasse a isso.
A abordagem dramática de Cantares de Salomão surgiu quando começou a declinar o interesse pela interpretação alegórica, no começo do século XIX. Todavia, também podemos atribuir a Orígenes a idéia inicial, que foi reiterada nos escritos de Milton. A partir de 1800 desenvolveram-se duas formas dessa interpretação. A primeira delas, exposta por F. Delitzsch, que pensava que o livro cantava duas personagens principais, Salomão e uma donzela interiorana descrita como a sulamita (Can. 6.13). O livro contaria como Salomão a encontrou em suas rústicas cercanias e a trouxe para Jerusalém, onde, desposando-se com ela, aprendeu a amá-la com mais do que um puro amor carnal. A outra forma dessa interpretação dramática foi proposta por Ewald, que, além de Salomão e da jovem sulamita, introduziu na narrativa uma suposta terceira personagem, um pastor que seria o amante da jovem. E ela, levada para a capital pelo rei, lembrava-se apaixonadamente do rapaz, elogiando as suas qualidades, até que Salomão permitiu a volta dela para o rapaz. Essa teoria, conhecida como «a hipótese do pastor», tornou-se, geralmente, aceita entre os estudiosos liberais. A principal dificuldade da posição de Ewald, contudo, é que não há nenhuma evidência textual em favor da existência de um suposto pastor, que seria uma das personagens centrais do livro. Além disso, ele supõe que tenha havido grande resistência da parte da jovem à conquista amorosa, ao passo que anarrativa bíblica mostra, precisamente, o contrário. Acresça-se a isso que Ewald dá a impressão de que o rei que queria seduzi-la à força, transformando Salomão em um vilão, e não no herói da história. Por esses e outros motivos, tal interpretação está inteiramente desacreditada.
A quarta interpretação principal do livro de Cantares é a da abordagem lírica. Esta pensa somente que o livro consiste em uma coletânea de poemas líricos, sem nenhuma conexão com a festa de casamento ou ocasiões festivas especiais. Se essa interpretação tão simples tem alguma vantagem a seu favor, essa vantagem é somente que evita as dificuldades inerentes às três outras principais interpretações.
Também poderíamos falar sobre a interpretação chamada típica, favorecida por certos eruditos conservadores. Ela tem a vantagem de preservar o sentido óbvio dos poemas, ao mesmo tempo em que percebe um sentido espiritual e, portanto, mais elevado do que uma mensagem puramente sensual ou erótica. De conformidade com essa interpretação, o livro de Cantares refletia o puro amor espiritual que se verifica entre Cristo e os seus seguidores. Também haveria idéias paralelas na Bíblia, conforme se vê em trechos como Oséias 1—3; Ezequiel 16,6 ss. e Efésios 5.22 ss. E o uso que Cristo fez da narrativa sobre Jonas (Mat. 12.40), bem como a alusão à serpente de metal, levantada no deserto (João 3.14), são aduzidas como compatíveis com esse método geral de interpretação.
O conteúdo do livro de Cantares revela uma atitude para com a natureza que raramente se encontra em outros trechos do Antigo Testamento. Os hebreus, geralmente, concebiam a natureza como algo que revelava o esplendor e a majestade de Deus, pois ele controlaria totalmente essas forças naturais, segundo o seu querer. Mas, no livro de Cantares, os ciclos da natureza correspondem aos sentimentos dos amantes. Talvez isso se deva ao fato de que esse livro tenha incluído noções poéticas puramente folclóricas. O fato é que o amado chega ao campo no instante em que os poderes vitais da terra estavam novamente se manifestando (Can. 2.8-17; 7.11-13). Se esses poemas realmente tinham alguma conexão com cerimônias nupciais, então a habilidade das personagens das festas poderia ser comparada à capacidade profissional das lamentadoras, que, em Jer. 9.17, são descritas como «mulheres hábeis». E visto que o livro de Cantares esteve associado à autoria salomônica desde o começo, a relação entre essa composição e a epítome de sabedoria de Israel parecia confirmar sua posição entre as obras de literatura de sabedoria de Israel. Todavia, quando a autoria salomônica foi posta em dúvida, então essa coleção de poemas foi relegada a outros gêneros literários.
Visto que o material de Cantares é essencialmente poético, por isso mesmo há nele características próprias de outras composições poéticas do Antigo Testamento. Ver no Dicionário sobre Poesia dos Hebreus, Essas características incluem itens comosinônimos, paralelismos, sintéticos e antitéticos, e acentos rítmicos que salientam pontos importantes.
XIII.  Teologia do Livro.
O livro de Cantares ocupa uma posição sui generis no cânon do Antigo Testamento, devido ao fato de não conter nenhuma teologia explícita. Os estudiosos que crêem que temos alí somente uma coleção de cânticos líricos ou folclóricos vêem nisso uma confirmação para a sua opinião. Portanto, somente através de interferências podemos determinar a posição teológica do livro; e, quando é encarado por esse ângulo, o livro de Cantares ajusta-se às mil maravilhas à tradição hebréia do monoteísmo. Porquanto não háali nenhum traço das influências mágicas ou das crenças politeístas que se acham, por exemplo, em cânticos de amor similares, provenientes do Egito. O amado só suspirava pela sua amada, exaltando assim o ideal da monogamia. Incidentalmente, isso parece contradizer a autoria salomônica, visto que o terceiro rei de Israel foi homem com muitíssimas mulheres e concubinas. Ver I Reis 11.3-8. Embora as imagens poéticas sejam quase totalmente estranhas para o gosto moderno, a composição nunca se torna obscena, mesmo de acordo com os padrões da civilização ocidental. De fato, o livro reflete os cânones tradicionais da moralidade sexual que fazem parte da legislação mosaica, e jamais tolera qualquer coisa que poderia ser descrita como baixa ou imoral. O livro também reflete as tradições expressas em Gênesis 2.24, que mantêm que, no casamento, institui-se uma unidade psicofísica entre o marido e sua mulher. E toda a discussão sobre as emoções dos dois amantes é mantida em um elevado nível de sensibilidade e moralidade. Portanto, a pureza e a beleza do amor humano físico, como um Dom divino, é o amor dominante do livro. O relacionamento natural entre um homem e sua esposa, que se amam, aponta no livro para a riqueza do amor humano, um pequeno exemplo do muito mais amplo, profundo e puro amor de Deus que lhe pertencem.

2 comentários:

Anônimo disse...

Gente que dificuldade hein???? O livro Cântico dos Cânticos é de base sexual, ou seja o Senhor por meio da sabedoria dada a Salomão sobre como a relação sexual entre o casal que é o primeiro sacramento e que gera todos os outros. Mas a base pode ser sexual, mas seu interior é messianico, sendo revelado o messias antes, durante e depois...

Anônimo disse...

E ainda alerta, que o casamento é para o sexo e não o contrário. Logo somente os que se casaram podem desfrutar dessa dádiva de Deus, que as vezes gera frutos