Autoria e Confirmação Antiga do Evangelho de Mateus


Ernesto Renan chamava o evangelho de Mateus de «o mais importante livro que jamais foi escrito» (citado em «The New Testament as Literature», Buckner B. Trawick, pág. 37). E.F. Scott disse, «O evangelho de Mateus tem sido aceito, em todos os tempos, como narrativa autoritária da vida de Cristo, o documento fundamental da religião cristã» (The Literature of the New Testament, pág. 65). Pelos meados do século II D.C., era o mais usado dos evangelhos, evidenciado pelo fato de que escritores cristãos desse século citam-no mais que qualquer outro evangelho. — Ireneu, Contra Heresias, nos livros III e IV, cita mais de Mateus do que dos demais evangelhos combinados. Esse evangelho nunca perdeu sua popularidade, e apesar de alguém dizer que gosta deste ou daquele evangelho, é provável que quanto ao uso real, Mateus seja o mais constantemente empregado. «Grupos tão radicalmente diferentes um do outro como os católicos romanos e os cientistas cristãos, apelam para Mateus como apoio para suas doutrinas particulares — os primeiros por causa da honra feita ao apóstolo Pedro, e os últimos porque esse evangelho apresenta os milagres em uma forma que tende mais por inspirar a confiança». (Introdução a Mateus, Sherman E. Johnson, Interpreter’s Bible pág. 231). Mateus parece ter sido o primeiro evangelho universalmente aceito pela igreja como autoritário, e em pé de igualdade com o A.T. Provavelmente sua aceitação começou em Antioquia, um dos primeiros centros principais da igreja antiga. Embora Marcos se baseasse sobre a autoridade da igreja de Roma, Mateus ultrapassou até mesmo àquele, e a despeito do fato de que o livro de Marcos foi escrito considerável tempo antes. E isso porque o evangelho de Mateus é muito mais completo como apresentação tanto das obras quanto das palavras de Cristo.
Por diversas razões, parece que o evangelho de Mateus obteve ascendência sobre os demais no princípio, a saber:
1.    O arranjo de seu material, por tópicos, e não necessariamente de modo cronológico, tornou-se um manual apropriado para instrução.
2.    Considerando todos os fatores, contém a mais completa narrativa, tanto das obras, como dos ensinamentos de Jesus.
3.    Reflete o ponto de vista mais universal.
4.    É o mais eclesiástico entre os evangelhos, procurando enfrentar e solucionar problemas da igreja, e não meramente narrar a história da vida e dos ensinamentos de Cristo.
Autoria e Confirmação Antiga
Quanto à canonicidade, o evangelho de Mateus é igual a qualquer outro livro do N.T., já que o cânon não foi formado senão a partir do século II D.C. E por essa altura, não menos que qualquer outro livro, já havia obtido larga aceitação no seio da igreja. Portanto, os primeiros pronunciamentos canônicos já o incluem. Ver o artigo separado sobre Cânon. Este artigo explica como os livros neotestamentários, nos primeiros cânones, a saber, os quatro evangelhos e dez das epistolas paulinas, diferem na confirmação do período pré-canônico, o que, para Mateus, seria um período de mais de cinquenta anos. A popularidade do evangelho de Mateus, pelos meados do século II D.C., mostra-nos que era conhecido e usado, provavelmente, logo depois de sua composição, embora não existam citações indiscutíveis do mesmo senão já dentro do período canônico. Sua autoria e autoridade apostólicas, conforme se supõe, contam com as seguintes confirmações antigas:
I.    Papias, conforme é citado ou referido por Eusébio, História Eclesiástica III. 39. Papias viveu em cerca de 130 D.C. e foi discípulo ou do apóstolo João ou do presbítero João, da Ásia Menor. Eusébio, evidentemente alude ao primeiro. Embora o próprio Eusébio se tenha queixado de como Papias misturava fatos com rumores, outros parecem ter tido mais confiança nele, e devemos levar a sério o que ele declara, embora não sem qualquer investigação. Papias, de acordo com algumas interpretações, identificou esse evangelho como de Mateus, apóstolo do Senhor; mas a declaração dele de que foi escrito em hebraico, no caso de alguns indica que sua alusão não era ao próprio evangelho, e, sim, às suas fontes informativas ou «oráculos», que talvez possam ser identificados com «Q». (Ver o artigo sobre o Problema Sinóptico, quanto a uma completa discussão sobre essa e outras fontes informativas desses evangelhos, isto é, Mateus, Marcos e Lucas).
2.    Irineu, III. 1.1 (130 D.C.), conforme é citado por Eusébio, em História Eclesiástica v.8.2. Ele também fala sobre o fato de que esse evangelho foi escrito originalmente em hebraico, pelo que as mesmas observações feitas sobre Papias, no tocante à «identificação» do evangelho, se aplicam aqui. Poucos eruditos modernos pensam que Mateus teve um original hebraico, como se o mesmo fosse apenas uma «tradução» para o grego. Por essa razão, a maioria deles pensa que aqueles antigos personagens se referem a alguma outra obra, talvez incorporada no evangelho de Mateus, mas não ao próprio evangelho de Mateus, conforme o conhecemos hoje em dia.
3.    Orígenes, conforme é citado por Eusébio, em História Eclesiástica VI 25, diz que esse evangelho é de autoria do apóstolo Mateus, conferindo-lhe natureza autoritária.
4.    Eusébio, em História Eclesiástica III.24.6 e V. 10,3, aceita o testemunho antigo, conforme se mostra acima, e põe seu selo de aprovação sobre o evangelho de Mateus, como composição do apóstolo desse nome. Naturalmente, por esse tempo, era assim que se manuseava universalmente esse evangelho: mas sua época (340 D.C.) foi muito tardia para permitir-nos considerar seu testemunho como dotado de qualquer valor independente.
Por conseguinte, desde o começo, e universalmente, tem-se julgado que esse evangelho foi escrito por Mateus, o publicano que era chamado Levi, conforme se vê no evangelho de Marcos, tendo aquele vindo a tornar-se um dos apóstolos de Jesus. O testemunho, conforme é descrito acima, após o tempo de Eusébio, passou a ser universalmente aceito. Assim é que Jerônimo, o mais sábio das autoridades eclesiásticas (400 D.C.) ensinou tal coisa, aliando-se a Agostinho (400 D.C.), o mais notável dos primeiros teólogos cristãos.
A maioria dos eruditos modernos, porém, reputa o próprio livro, em sua linguagem, manuseio histórico, etc., como contra o testemunho acima. A maioria supõe que Papias realmente aludiu à outra obra Oráculos do Senhor, escrita por Mateus em hebraico (isto é, aramaico, o idioma da Palestina na época, pois o hebraico clássico nâo era mais usado popularmente). Porém é possível que uma fonte principal deste evangelho tenha sido esses oráculos. Alguns eruditos identificam esses oráculos (pelo menos parcialmente) com Q, o que representa os ensinamentos de Cristo. Se estas ideias expressam a verdade, então podemos continuar a chamar este evangelho de Mateus, porquanto, de modo real, repousa sob a autoridade apostólica de Mateus:
Evidências em Prol da Autoria de Mateus:
1.    A tradição antiga, que acabamos de descrever.
2.    Alguns acham que a referência, em Mat. 10:3, ao «publicano», é um sinal do autor do livro. Presumivelmente o autor, Mateus, o cobrador de impostos, chamou-se tal por humildade já que sua profissão era mui desprezada naqueles dias, porquan to, inevitavelmente, estava misturada à fraude, à ganância e à violência.
3.    A alusão, neste evangelho, ao começo do discipulado de Mateus, presumivelmente é outro sinal de sua humildade, conforme foi fraseada. Mat. 9:9 meramente menciona o simples fato de que Mateus, ao ser chamado por Jesus, levantou-se e passou a segui-lo. Mas o trecho de Luc. 5:28 adorna isso, dizendo que ele «deixou tudo», ao assim fazer. Tal argumento, entretanto, é anulado pela observação de que a narrativa de Marcos é como a de Mateus, e que provavelmente foi apenas copiada neste evangelho, conforme se achava em suas fontes (ver Mar. 2:14).
4.    Nas listas dos apóstolos, supõe-se que Mateus, propositalmente, punha o seu nome após o de Tomé (10:3), ao passo que em outras listas o seu nome figura antes do de Tomé, presumivelmente outro sinal da humildade do autor sagrado (ver Mar. 3:18 e Luc. 6:15).
Segundo se observa, os argumentos expostos, particularmente os internos, quase não convencem. O fato é que esse evangelho é anônimo, pois seu autor não é identificado. Sem importar o que creiamos sobre sua autoria, pois, isso deve repousar sobre a tradição ou opinião pessoal, e não sobre o próprio evangelho. Isso significa que a questão de sua autoria dificilmente pode servir de prova de ortodoxia, sem importar se alguém é liberal ou conservador. Corremos o perigo de —confundir a tradição — com a doutrina revelada pelo Espírito Santo.
Argumentos Contrários à Autoria de Mateus:
1.    A tradição antiga, em prol da autoria de Mateus, sem importar a importância que pareça ter, parece aludir aos «Oráculos do Senhor» (que talvez seja o documento Q), e não ao que agora conhecemos como evangelho de Mateus. O próprio Jerônimo, que apóia a tradição antiga, supostamente cita Mateus (seu «evangelho aos Hebreus»), mas na realidade suas citações não são extraídas deste livro. Sem dúvida, pois, surgiu alguma forma de confusão com outros documentos.
2.    Os supostos apoios internos, em favor da tradição acerca de Mateus, ao serem examinados, tornam-se fraquíssimos.
3.    Era comum, nos primeiros séculos, que a apostolicidade fosse vinculada a algum escrito pela mera vinculaçâo do nome de algum apóstolo ao mesmo. Temos cerca de cem dessas obras, isto é, escritos que trazem os nomes dos apóstolos, mas que na realidade não foram escritos por eles, seguindo as classificações normais de evangelhos, atos, epístolas e apocalipses. (Ver o artigo sobre Livros Apócrifos). É possível, portanto, que esse costume esteja vinculado ao evangelho de Mateus, sem importar que seu verdadeiro autor tenha sido outrem.
4.  Concorda-se universalmente que Marcos foi usado como esboço histórico deste livro. Cerca de noventa por cento de Marcos foi incorporado em Mateus. Mas Marcos, conforme sabemos, certamente não era testemunha ocular. É difícil imaginar que Mateus, uma testemunha ocular, tenha dependido do esboço histórico de Marcos, que não foi testemunha ocular, sobretudo quando, de acordo com o testemunho de Papias, Marcos não registrou os acontecimentos — necessariamente na ordem — em que eles tiveram lugar. Uma testemunha ocular quase certamente teria composto o seu próprio esboço histórico.
5.    Pouquíssimos eruditos reputam Mateus como tradução de um original hebraico (aramaico). Quase certamente foi originalmente escrito em grego, pelo que não pode ser, pelo menos em sua inteireza, o livro referido por Papias, sobre cujo testemunho outros autores cristãos primitivos basearam suas opiniões. Este evangelho sempre cita a LXX (tradução grega do A.T. hebraico), e certamente isso indica que foi originalmente escrito em grego, por um autor para quem essa lingua era nativa, ou, pelo menos, que era um verdadeiro bilíngüe, provavelmente desde o nascimento. Isso dificilmente poderia aplicar-se a Mateus, o publicano da Galiléia.
6. O evangelho de Mateus não foi o único a ser atribuído a Mateus no século II. A seita dos nazarenos possuía um evangelho que tinha esse nome, conhecido por «Evangelho segundo os Hebreus». Evidentemente, é a essa obra que Jerônimo fez referências (de Vir. Ilus. 3; contra Pelag. III.2, comentário sobre Isa. 2:2); e diversos outros dos primeiros pais da igreja, como Irineu, Hegesipo, Eusébio, fazem alusões à mesma. Sem dúvida houve algum material paralelo a este evangelho de Mateus pelo que Jerônimo, equivocadamente, julgou originalmente que as duas obras eram uma só. Teve um original hebraico, e esse fato, bem como o fato de que os «Oráculos» (talvez genuinamente pertencentes a Mateus) também tinham um original hebraico, pode ter provocado a idéia de que a linguagem e a autoria do evangelho de Mateus fossem referidas como «hebraica» e «de Mateus», devido à confusão com essas outras obras.
CONCLUSÃO
1.    O evangelho de Mateus tem tão forte confirmação antiga e aceitação canônica quanto qualquer outro livro do N.T. Apesar do que se possa pensar sobre sua autoria, nenhuma dúvida é lançada sobre sua inspiração e autoridade (apostólica).
2.    O evangelho de Mateus tem uma base histórica apostólica genuína, já que incorpora o esboço geral de Marcos. O leitor deve consultar, na introdução àquele livro, as seções que tratam de data e autoria, onde são dados argumentos razoáveis em prol da autoridade apostólica daquele escrito.
3.    Embora seja duvidoso de que um apóstolo e testemunha ocular, como foi Mateus, usaria o esboço histórico de uma não testemunha, como foi Marcos, não é impossível que isso tenha sucedido. Se supormos que Mateus escreveu, principalmente, para nos dar as «declarações» de Jesus, não será irracional supormos que, tendo examinado o esboço de Marcos, ele tenha ficado satisfeito com o mesmo, não hesitando em usá-lo. Esse esboço histórico, podemos ainda conjecturar, foi então construído ao redor dos cinco grandes blocos de ensinos, com poucas alterações nas descrições e ordem dos eventos, para que tal esboço fosse adaptado aos mesmos. A adaptação requereu certas emendas editoriais.
4.    Quanto aos blocos de ensino, é razoável aceitar a opinião de vários eruditos, de que devem ser identificados (pelo menos parcialmente) com os «Oráculos do Senhor», de Mateus, e que esses oráculos são uma fonte por trás do documento Q explicando também grande parte do documento M, isto é, material que se acha somente em Mateus, enquanto Q é aquela «fonte didática» compartilhada por Mateus e Lucas. É possível, embora não haja evidências absolutas para afirmá-lo, que o evangelho agora chamado «Mateus» obteve esse nome porque os antigos, no período pré-canônico, tiveram consciência do fato de que os ensinamentos de Jesus, reduzidos à forma escrita por Mateus, formavam a parte principal dos ensinamentos do documento agora chamado de o evangelho de Mateus.
5.    O próprio evangelho não tem qualquer indicação de sua autoria, pelo que, de fato, é anônimo. Portanto, sem importar o que dissermos sobre a sua autoria, isso repousa sobre evidências vindas dos pais da igreja e da tradição eclesiástica, ou rejeição da mesma. Já que o próprio evangelho não identifica seu autor, chamá-lo «de Mateus» ou negar tal coisa, ’dificilmente pode ser prova de ortodoxia ou de fé cristã.
6.   O problema real. Prezados amigos, o real problema que enfrentamos, no caso do evangelho de Mateus, não é quem foi seu autor humano, mas antes, o que fazemos com as palavras deste livro, cuja fonte, afinal, é divina. Nosso problema não ê se o lemos, ou analisamos, e nem mesmo se «cremos» nele, intelectualmente falando. Nosso problema é se praticamos ou não os seus preceitos. Quanto do Cristo, ali descrito, tem sido infundido em meu ser? Quanto dessa natureza se tem tornado minha? Quão vital é seu ensino para mim? O evangelho de Mateus apresenta um retrato imortal do Cristo. Quão profundamente esse retrato tem penetrado em minha alma, para transformá-la segundo a imagem de Cristo?

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